Carmen Miranda, em nítido technicolor
Carmen, cultura pop e showbiz
É difícil mensurar a importância de Carmen Miranda, visto que todo brasileiro, por mais jovem que seja, já tenha ouvido falar dela. Se o showbiz tem o poder de elevar pessoas comuns a lendas, Carmen Miranda fez jus à alcunha. Foi rainha do rádio, diva do cinema, começava a ganhar a TV quando esta ainda se popularizava.
Carmen era solar, alegre e uma mulher (quase) sem tabus, coisa rara para quem nasceu na primeira década do século XX — daí é justo dizer que não era uma mulher de seu tempo, mas à frente dele. Sabia circular: amiga de Caymmi, Josué de Barros, Ary Barroso e Vinícius de Morais, contou com o apoio de grandes compositores para triunfar, junto a seu talento descomunal para o palco e as câmeras.
Quando acusaram-na de estar “menos brasileira”, lançou a ótima “disseram que andei americanizada”. Seu autodeboche era típico do humor esperto do samba, dos trocadilhos, da malandragem da Lapa — seu verdadeiro berço cultural.
Carmen foi a nossa the one and only : a primeira a ganhar o mundo — e nisso seguiria insuperável — a primeira brasileira a chegar em Hollywood e uma das primeiras vítima desta. Sua história encanta e revolta como toda boa história: tinha carisma, beleza, criatividade: o turbante de bananas foi criação dela, e se tornou um ícone da cultura pop comparável às latinhas de Campbell’s de Andy Warhol. Hoje há estudos sobre ela que vão da moda ao queer, passando pela política internacional.
Mas, como muitas mulheres que ganham o showbiz, seu talento e carisma foram sugados pela indústria e por pessoas tão próximas que podiam a explorar sem maiores suspeitas, como o próprio marido. Saiu do Brasil alegre, aclamada, jovem, levando uma vida regrada — não bebia e nem usava drogas — e Hollywood a devolveu deprimida, viciada em remédios e álcool. Seu corpo frágil de 1,52 não aguentou a quantidade cavalar de remédios a que se submeteu ao longo de anos para aguentar as horas intermináveis de trabalho nos palcos ou nos sets, em altas doses que levariam também figuras como Maryln Monroe ou Michael Jackson.
Ruy Castro, em sua biografia sobre a multiartista, infere que sua geração foi uma espécie de “cobaia” do showbiz, quando ainda não se entendia os riscos que o uso excessivo de remédios e suas misturas poderia causar e quando o trabalho em excesso simplesmente não era questionado, ainda que seu corpo desse inúmeros sinais de que algo estava errado e que ninguém conseguia ler.
Carmen amava o carnaval e sonhava com o dia em que pudesse voltar a seguir o bloco na rua. Voltaria ao Brasil e fantasiaria-se de anônima, que fosse. Ironicamente, o sucesso a impediu de realizar tantos outros sonhos quanto este. O reencontro com os brasileiros se deu no cortejo de sua morte, que acabou virando o imenso carnaval que ela merecia — e finalmente ganhara, ainda que tarde demais.
Nas ruas, o povo cantava em uníssono seu maior sucesso: “taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim”, talvez sem imaginar que essa seria a sina da própria intérprete, que ajudou a colorir uma era devastada pela guerra, pela miséria e pela tristeza, afirmando e reafirmando que era brasileira e, ainda assim, tendo de lidar com a malícia e a desconfiança da crítica mais erudita.
Em um mundo revelado em nítido preto & branco, só ela surgia em vívido tecnicolor.